Barulho do Baralho

Marcílio Vieira, pai do ex-prefeito Zizinho, era sitiante, gostava mesmo é de lidar com animais, principalmente, mulas e burros.

De gestos cautelosos, fala mansa, não tinha o vício de jogar, beber ou fumar. Mas como não era de ferro, gostava de sapear o animado jogo de Buraco, que todas as noites ocorria num sobradão existente na esquina das Rua do Fundão com a Rua dos Tocos. Para uma referência atual, onde hoje fica a agência do Banco do Brasil.

Marcílio Vieira era aquele sapo calado, que não dava palpite nem na compra nem no descarte. Não fazia cara feia, não resmungava. Tampouco tinha o atrevimento e a ousadia de tomar as cartas da mão do jogador.

Sapeava porque não gostava de jogar, ou até mesmo pelo prazer de dizer que não jogava. Também naquela época não tinha televisão para se ver. Hoje tem, mas só para quem possui parabólica, aquela bacia enorme e esquisita em cima das casas, mais feia que camisa do Botafogo secando no varal.

Pois bem... Certo dia, o jogo estava equilibrado e disputadíssimo. Última rodada.

Juca Damato estava por uma carta. Num é que lá fora, inicia-se um murmurinho. Vozes difusas. Marcílio Vieira chega até à janela e vê que está ocorrendo um enorme bafafá, um quiproquó qualquer. Várias pessoas envolvidas.

Não querendo perturbar o jogo, Marcílio Vieira, cochicha ao ouvido de Juca Damato :

- A confusão lá fora tá feia. É preciso providências.

Impassível, sem desgrudar os olhos das cartas e do baralho, Juca Damato, que há quatro rodadas busca a carta prometida, responde baixinho :

- Agüenta aí, que o jogo está terminando.

O vozerio, a algazarra aumenta. Pernadas, poeira levantando, chapéu de palha voando.

Marcílio Vieira, retorna à janela e vê a barafunda crescer e tomar proporções incontroláveis. Um dos brigões, retira da cintura um objeto. Peixeira ou arma de fogo. Não dá para distinguir. Volta à mesa e diz impaciente e temeroso :

- Juca, a coisa tá preta, pode até sair morte.

O baralho insensível à busca do delegado, de propósito esconde a carta salvadora. Imperturbável compra mais uma carta ingrata e pede ao amigo :

- Marcílio, vai controlando a situação. Tô indo.

Marcílio vai até a porta e vê um rapaz atirar com uma garrucha, que masca. Há uma correria desordenada. Gente indo para a Rua do Campo, Fundão abaixo, Rua dos Tocos acima e até lá para o lado de lá da ponte, na Rua do Comércio. A briga termina sem vencidos e vencedores.

Na mesa redonda e verde, o adversário consegue bater e ganhar a partida do Juca Damato. Desconsolado, levanta, ajeita os suspensórios, conserta os óculos, decidido a por fim ao imbróglio na rua.

Antes, porém, não resiste à tentação e vira carta que ficou sobre o baralho para ser comprada.

Cínica, sádica e ironicamente era ela.

Não a rasga e nem a morde, mas bem que ela merecia uns tapas.

Vai até a porta e pergunta :

- Cadê a briga, Marcílio ?

- Juca, os rapazes não agüentaram te esperar e já resolveram a contenda.

- Mas Marcílio, isto era hora deles aprontarem. Basta o danado do baralho.