Tiranos da PAZ - cenário cotidiano

 

No deserto

a tempestade de areia

risca os olhos e arranha a alma.

No polo norte o frio maltrata o corpo

e gela o coração.

 

À beira do velho Arrudas,

a mendiga, anciã descolorida,

desesperada e atônita,

despeja caixotes e velhas latas

empretecidas e gordurosas de fumaça,

sobre o ribeirão poluído.

Num momento de fúria

a mendiga despoja-se de todo seu lar

sob o viaduto Santa Tereza.

Minha esmola de compaixão

não doa à velhinha um casebre, simples.

Nem eu ...nem o antigo BNH.

 

O ladrão rouba

o operário sobressaltado

e assaltado pelo cotidiano

e pelo patrão.

 

No bairro distante,

a lavadeira e faxineira

de nossas classes burguesas e inconseqüentes,

me pede para não desmoronar

seu barraco, num lote

sem dono declarado.

Pobre senhora

que não sabe

da minha impotência de poder.

A tua oferenda

para limpar a minha casa,

me comove.

Diga-me senhora pobre :

Como lavar os homens ?

Orações ? As minhas são fracas.

 

A criança favelada

rodeia o carro da empresa que trabalho.

A sua idade pode variar

de  três a seis anos...

A subnutrição nos tira

a capacidade de avaliar.

Seus olhos verdes

bem exprimem a nossa esperança,

espelham a grande mentira,

transparente de verdade.

Welligton, Uéliton, Uéli,

Agarrastes, como brisa passageira,

à traseira do carro

e como sonho matutino desgarrastes.

Arranhastes os joelhos,

machucastes meu coração.

 

A prostituta cede grátis

o lado direito de sua cama imunda.

O espelho puído, reflete

a janela antiga,

sem mistérios, sem fronteiras.

Algo incomum sacode

o meu lado esquerdo

proveitoso à aventura,

Nesta cama direita,

amordaça os meus sentimentos,

o meu pudor impudico.

 

A rua esburacada do bairro (Pompéia)

registra a incapacidade dos administradores

impostos às capitais.

Pobre Belo Horizonte.

Um senhor-velho caminha com dificuldades.

Sobre seus pés,

cobertos de cravos e idade,

pedregulhos e chão irregular.

Modestamente, pede a minha mão.

A minha caridade transporta

ao passeio semi-plano.

A angústia passeia o meu ser.

Escorrega uma lágrima

de minha unha encravada.

Um soluço percorre os meus olhos.

Um cisco à toa.

 

Rompe a madrugada

acordes trêmulos de um violão rouco,

a boêmia nos furta o dia

e nos poupa a noite.

Permutam-se amores e ilusões.

Proscrito pela sociedade

o seresteiro Zé Manga Rosa,

por alegada insanidade,

quando a sua única demência

que se resumia a amar demais.

Morreu.

Enterraram-no como indigente.

Frágeis mentes, dementes.

 

Na casa humilde,

o lavrador de rugas precoces,

ameniza a minha sede,

com uma caneca de água da cisterna.

Estendo a minha mão em agradecimento,

o camponês timidamente recusa.

Receoso, me mostra os dedos

corroídos pela lepra.

Cuspo minha repugnância.

Não consigo escarrar a minha podridão.

 

Na guerra

um homem se nega a matar.

A corte marcial o condena.

Como desertor tiram-lhe a vida. - vida que não quis roubar dos outros.

Como andam os soldados de Cristo.

O que fazeis generais de Cristo ?

Medonha e cruel guerra de interesses.

 

O patrão falido atrasa o pagamento

o empregado resignado

conserva a fome da família.

O tridente da razão

o ilumina para o requinte da extorsão.

A ignorância do dia-a-dia

faz com que

como o quê se faz.

Transborda-se em caso de polícia,

o pobre sempre vai para a cadeia

ao rico sempre falta vaga.

 

À areia que risca os olhos

e arranha a alma.

ao frio que maltrata o corpo

e gela o coração.

À mendiga e descolorida anciã

ou ao operário sobressaltado

e assaltado pelo cotidiano,

indago :

Como lavar homens e almas,

desconhecida lavadeira ?

Criança dos olhos verdes

aonde brilhará a nossa esperança ?

Prostituta sem mistérios, sem fronteiras,

quais os sentimentos de valor

que nos amordaça ?

Zé Manga Rosa, seresteiro;

loucura maior invade o mundo ?

Meu lavrador humilde

que a lepra não corrompeu a alma

diga-me o motivo da nossa podridão ?

Anônimo desertor

por que fugimos da paz?

Operário porque o nosso caso de polícia

nunca vai a julgamento ?

Desferem tiros no presidente,

fazem curras à mocinha indefesa,

estilhaços fragmentam

o Santo Padre.

qualquer coisa maior atinge a nós,

fere a Sua Santidade.

Eu, você, eles,

Somos, todos, tiranos da PAZ.

20/05/81