Bondade Interior,
Esperteza Capital
Aconteceu lá pra banda do Santa Efigênia. Nenhum
preconceito com o bairro. Morei lá, guardo amigos e boas lembranças. Para ser
mais preciso o ocorrido foi na Rua Niquelina, numa
loja, recém-inaugurada, daquelas que de tudo um pouco tem. A história me contou
a proprietária, moça do interior, coração de mulher, alma mineira.
Com a presteza de
comerciante, em início de atividade, disposta a cativar prováveis clientes,
dirigiu-se ao senhor, acima da meia-idade, que adentrara o seu recinto. - Deseja alguma coisa? - Nada não... Tô só olhando... Fez-se um pequeno silêncio, depois
perguntou: - Quanto custa esta bicicleta? - Oitenta reais. - Pois é,
eu tenho quatro netas e já comprei três bicicletas. Falta uma, para a mais
nova. Por acaso estava passando, vi, pensei... Aliás, na verdade é até
coincidência, pois eu passo sempre por aqui, para levar uns legumes, para um
asilo ali em cima e nem tinha reparado na existência do estabelecimento. - É, faz pouco tempo que estamos
aqui. Cidade grande é difícil, sabe, né! Temos que correr atrás. A vida não tá fácil. - Como vai a sua terra? - Guidoval !?
, tá jóia. Tive lá semana passada. - Não diga! Também sou de lá. Qual
a sua família? - Do Zizinho
do Marcílio. - É mesmo, o Sô Marcílio é seu avô?
Retrucou o senhor, demonstrando uma
intimidade que não existia. - Você o conheceu? Disse a
vendedora. - Muito. - E você é de qual da família? - Moreira. - Parente do Angelino? - Conhece o Angelino? É meu tio.
Mundo pequeno esse. Olha aqui. Tirou a identidade. De longe
mostrou o documento. Deu para ler de relance “Valdevino
Moreira” e mais alguma coisa que não deu para ver. O senhor guardou-a
rapidamente na carteira. A moça, também nem tão moça assim,
para não desviar o rumo da prosa, voltou ao negócio. - Vai levar bicicleta? - Mas como eu estava contando,
tenho uma fazenda, lá em Betim e vendo no CEASA minhas verdurinhas, mas sempre
guardo alguma coisa para asilo. A bicicleta fica pra depois. Tava até querendo.
Acontece, você não vai nem acreditar. A minha esposa retirou os dois seios.
Estou vindo da drogaria Araújo, fui lá comprar o remédio que o médico receitou.
Já com uma certa
intimidade continuou: - Conterrânea, não se pode
descuidar. Peguei a carteira, cadê o dinheiro? Me roubaram
e eu nem vi. E o pior é que desgraça não vem só. Meu empregado me deixou lá no
centro e voltou com a kombi
para a fazenda. Tô precisando de dinheiro para aviar
a receita. Como diz no interior. Tô na mão de calango. - Precisa de quanto? - Que isto menina, não esquenta
não, eu me arrumo. - Mas fala quanto - Já que você insiste, é apenas cinqüenta reais. - Vou preencher o cheque. - Não precisa, não quero dar
amolação. Primeira vez que a gente encontra... e... - Que nada, você conhece como nós
lá de Guidoval somos. - Mas... - Depois você me paga. Vou preencher
o cheque - Não é justo... Fico sem graça.
Você vai pensar o quê! - Toma o cheque. - Eu vou aceitar, mas você fica com
o meu relógio. É de estimação, foi de meu avô. - Não precisa. Que isso! O senhor ameaçou, dessas ameaças que não se
concretizam, tirar o relógio do pulso. - Toma o relógio, que quando eu
vier pagar, você me devolve, inclusive aproveito e trago umas coisinhas,
mandioca, abobrinha, quiabo, umas couve, jiló. Você
gosta de jiló? - Gosto, com angu e lombo de porco,
uma delícia. Agora o relógio nem pensar. - Aí eu fico sem jeito. Mas prometo
que às 2 horas da tarde eu volto com o seu dinheiro. - Passa mais tarde, lá pras quatro horas.
Vou sair para resolver uns problemas. - Então até as quatro. O senhor se foi, rápido, sumiu, com o relógio no pulso. Desapareceu,
pelo menos, já se passaram quatro semanas. Ainda não voltou. Ainda me contou mais a dona da loja. Veja como fui inocente. Chega um homem que nunca vi. Fala das netinhas, o zeloso avô. Cita um asilo de velhos e sua
caridade comovente. Apresenta uma doença cruel para a
sua esposa e qualquer mulher. Pesca de minha
boca, que sou do interior, o nome da cidade, meu pai e avô. Entrego-lhe de bandeja um parente.
Moreira existe em toda parte. Se faz vítima de um furto e
desprotegido, à pé, por culpa do empregado. Mostra-se grato, a simular
recompensa em legumes e verduras. Oferece honestidade, em forma de relógio de
estimação por garantia. Tanta incoerência e eu caí como uma tola. Para encerrar, a moça da loja foi ao banco, naquela tarde. O cheque
fora descontado, incontinênti, na boca do caixa.
Ildefonso Dé Vieira 28/06/95 |